O perfil de Marco
Archer por um jornalista que conversou com ele 4 dias na prisão
Nos bons tempos |
O reporter Renan
Antunes de Oliveira entrevistou Marco Archer em 2005, numa prisão na Indonésia.
Abaixo, seu relato:
O carioca Marco
Archer Cardoso Moreira viveu 17 anos em Ipanema, 25 traficando drogas pelo
mundo e 11 em cadeias da Indonésia, até morrer fuzilado, aos 53, neste sábado
(17), por sentença da Justiça deste país muçulmano.
Durante quatro dias
de entrevista em Tangerang, em 2005, ele se abriu para mim: “Sou traficante,
traficante e traficante, só traficante”.
Demonstrou até uma
pontinha de orgulho: “Nunca tive um emprego diferente na vida”. Contou que
tomou “todo tipo de droga que existe”.
Naquela hora estava
desafiante, parecia acreditar que conseguiria reverter a sentença de morte.
Marco sabia as regras
do país quando foi preso no aeroporto da capital Jakarta, em 2003, com 13,4
quilos de cocaína escondidos dentro dos tubos de sua asa delta. Ele morou na
ilha indonésia de Bali por 15 anos, falava bem a língua bahasa e sentiu que a
parada seria dura.
Tanto sabia que fugiu
do flagrante. Mas, acabou recapturado 15 dias depois, quando tentava escapar
para o Timor do Leste. Foi processado, condenado, se disse arrependido. Pediu
clemência através de Lula, Dilma, Anistia Internacional e até do papa
Francisco, sem sucesso. O fuzilamento como punição para crimes é apoiado por
quase 70% do povão de lá.
Na mídia brasileira,
Marco foi alternadamente apresentado como “um garoto carioca” (apesar dos 42
anos no momento da prisão), ou “instrutor de asa delta”, neste caso um hobby
transformado na profissão que ele nunca exerceu.
Para Rodrigo Muxfeldt
Gularte, 42, o outro brasileiro condenado por tráfico, que espera fuzilamento
para fevereiro, companheiro de cela dele em Tangerang, “Marco teve uma vida que
merece ser filmada”.
Rodrigo até ofereceu
um roteiro sobre o amigo à cineasta curitibana Laurinha Dalcanale, exaltando:
“Ele fez coisas extraordinárias, incríveis.”
O repórter pediu um
exemplo: “Viajou pelo mundo todo, teve um monte de mulheres, foi nos lugares
mais finos, comeu nos melhores restaurantes, tudo só no glamour, nunca usou uma
arma, o cara é demais”.
Para amigos em liberdade,
que trabalharam para soltá-lo, o que aconteceu teria sido “apenas um erro” do
qual ele estaria arrependido.
Em 2005, logo depois de receber a sentença de morte num tribunal em Jacarta |
Na versão mais nobre,
seria a tentativa desesperada de obter dinheiro para pagar uma conta de
hospital pendurada em Cingapura – Marco estaria preocupado em não deixar o nome
sujo naquele país. A conta derivou de uma longa temporada no hospital depois de
um acidente de asa delta. Ter sobrevivido deu a ele, segundo os amigos, um
incrível sentimento de invulnerabilidade.
Com esta ficha
corrida, a campanha pela sua liberdade nunca decolou das redes sociais. A mãe
dele, dona Carolina, conseguiu o apoio inicial de Fernando
Gabeira, na Câmara Federal, com voto contra de Jair Bolsonaro.
O Itamaraty e a
presidência se mexeram cada vez que alguma câmera de TV foi ligada, mesmo
sabendo da inutilidade do esforço.
Mesmo desafiador, ele
deixou transparecer que tudo seria inútil, porque falava sempre no passado, em
tom resignado: “Não posso me queixar da vida que levei”.
Marco me contou que
começou no tráfico ainda na adolescência, diretamente com os cartéis
colombianos, levando coca de Medellín para o Rio de Janeiro. Adulto, era um dos
capos de Bali.
O homem preso por
narcotráfico passou a maior parte da entrevista chapado. O consumo de drogas em
Tangerang era uma banalidade.
Pirado, Marco fazia
planos mirabolantes – como encomendar de um amigo carioca uma nova asa, para
quando saísse da cadeia.
Nos momentos de
consciência, mostrava que estava focado na grande batalha: “Vou fazer de tudo
para sair vivo desta”.
Marco era um
traficante tarimbado: “Nunca fiz nada na vida, exceto viver do tráfico.”
Gabava-se de não ter servido ao Exército, nem pagar imposto de renda. Nunca
teve talão de cheques e ironizava da única vez numa urna: “Minha mãe me pediu
para votar no Fernando Collor”.
A cocaína que ele
levava na asa tinha sido comprada em Iquitos, no Peru, por 8 mil dólares o
quilo, bancada por um traficante norte-americano, com quem dividiria os lucros
se a operação tivesse dado certo: a cotação da época da mercadoria em Bali era
de 3,5 milhões de dólares.
Marco me contou, às
gargalhadas, sua “épica jornada” com a asa cheia de drogas pelos rios da
Amazônia, misturado com inocentes turistas americanos. “Nenhum suspeitou”.
Enfim chegou a Manaus, de onde embarcou para Jakarta: “Sair do Brasil foi
moleza, nossa fiscalização era uma piada”.
O momento em que ele recebeu a confirmação da data do fuzilamento |
O momento em que ele
recebeu, nesta semana, a confirmação da data do fuzilamento
Na chegada, com
certeza ele viu no aeroporto indonésio um enorme cartaz avisando: “Hukuman
berta bagi pembana narkotik’’, a política nacional de punir severamente o
narcotráfico.
“Ora, em todo lugar
do mundo existem leis para serem quebradas”, me disse, mostrando sua peculiar
maneira de ver as coisas: “Se eu fosse respeitar leis nunca teria vivido o que
vivi”.
Ele desafiou o
repórter: “Você não faria a mesma coisa pelos 3,5 milhões de dólares”?
Para ele, o dinheiro
valia o risco: “A venda em Bali iria me deixar bem de vida para sempre” – na
ocasião, ele não falou em contas hospitalares penduradas.
Marco parecia
exagerar no número de vezes que cruzou fronteiras pelo mundo como mula de
drogas: “Fiz mais de mil gols”. Com o dinheiro fácil manteve apartamentos em
Bali, Hawai e Holanda, sempre abertos aos amigos: “Nunca me perguntaram de onde
vinha o dinheiro pras nossas baladas”.
Marco guardava na
cadeia uma pasta preta com fotos de lindas mulheres, carrões e dos apartamentos
luxuosos, que seriam aqueles onde ele supostamente teria vivido no auge da
carreira de traficante.
Num de seus rolés
pelo mundo ele fez um cursinho de chef na Suiça, o que foi de utilidade em
Tangerang. Às vezes, cozinhava para o comandante da cadeia, em troca de
regalias.
Eu o vi servindo
salmão, arroz à piemontesa e leite achocolatado com castanhas para sobremesa. O
fornecedor dos alimentos era Dênis, um ex-preso tornado amigão, que trazia os
suprimentos fresquinhos do supermercado Hypermart.
Marco queria contar
como era esta vida “fantástica” e se preparou para botar um diário na internet.
Queria contratar um videomaker para acompanhar seus dias. Negociava
exclusividade na cobertura jornalística, queria escrever um livro com sua
experiência – o que mais tarde aconteceu, pela pena de um jornalista de São
Paulo. Um amigo prepara um documentário em vídeo para eternizá-lo.
Diplomatas se mexeram
nos bastidores para tentar comprar uma saída honrosa para Marco. Usaram desde a
ajuda brasileira às vítimas do tsunami até oferta de incremento no comércio,
sem sucesso. Os indonésios fecharam o balcão de negócios.
As execuções são assim |
O assessor
internacional de Dilma, Marco Aurélio Garcia, disse que o fuzilamento deixa
“uma sombra” nas relações bilaterais, mas na lateral deles o pessoal não tá nem
aí.
A mãe dele, dona
Carolina, funcionária pública estadual no Rio, se empenhou enquanto deu para
livrar o ‘garotão’ da enrascada, até morrer de câncer, em 2008.
As visitas dela em
Tangerang eram uma festa para o staff da prisão, pra quem dava dinheiro e
presentes, na tentativa de aliviar a barra para o filhão.
Com este empurrão da
mamãe Marco reinou em Tangerang, nos primeiros anos – até ser transferido para
outras cadeias, à espera da execução.
Eu o vi sendo
atendido por presos pobres que lhe serviam de garçons, pedicures, faxineiros.
Sua cela tinha TV, vídeo, som, ventilador, bonsais e, melhor ainda, portas
abertas para um jardim onde ele mantinha peixes num laguinho. Quando ia lá,
dona Carola dormia na cama do filho.
Marco bebia cerveja
geladinha fornecida por chefões locais que estavam noutro pavilhão. Namorava
uma bonita presa conhecida por Dragão de Komodo. Como ela vinha da ala
feminina, os dois usavam a sala do comandante para se encontrar.
A namorada |
A malandragem carioca
ajudou enquanto ele teve dinheiro. Ele fazia sua parte esbanjando bom humor.
Por todos os relatos de diplomatas, familiares e jornalistas que o viram na
cadeia de tempos em tempos, Marco, apelidado Curumim em Ipanema, sempre se
mostrou para cima. E mantinha a forma malhando muito.
Para ele, a balada
era permanente. Nos últimos anos teve várias mordomias, como celular e até
acesso à internet, onde postou algumas cenas.
Um clip dele circulou
nos últimos dias – sempre sereno, dizendo-se arrependido, pedindo a segunda
chance: “Acho que não mereço ser fuzilado”.
Marco chegou ao
último dia de vida com boa aparência, pelo menos conforme as imagens exibidas
no Jornal Hoje, da Globo.
Numa gravação por
telefone, ele ainda dava conselhos aos mais jovens, avisando que drogas só
podem levar à morte ou à prisão.
Sua voz estava firme,
parecia esperar um milagre, mesmo faltando apenas 120 minutos pra enfrentar o
pelotão de fuzilamento – a se confirmar, deixou esta vida com o bom humor intacto,
resignado.
Sabe-se que ele pediu
uma garrafa de uísque Chivas Regal na última refeição e que uma tia teria lhe
levado um pote de doce-de-leite.
O arrependimento
manifestado nas últimas horas pode ser o reflexo de 11 anos encarcerado,
afinal, as pessoas mudam.
Para mim, o homem só
disse que estava arrependido de uma única coisa: de ter embalado mal a droga,
permitindo a descoberta pela polícia no aeroporto.
“Tava tudo pronto pra
ser a viagem da minha vida”, começou, ao relatar seu infortúnio.
Foi assim: no
desembarque em Jakarta, meteu o equipamento no raio x. A asa dele tinha cinco
tubos, três de alumínio e dois de carbono. Este é mais rijo e impermeável aos
raios: “Meu mundo caiu por causa de um guardinha desgraçado”, reclamou.
“O cara perguntou
‘por que a foto do tubo saía preta’? Eu respondi que era da natureza do
carbono. Aí ele puxou um canivete, bateu no alumínio, fez tim tim, bateu no
carbono, fez tom tom”.
O som revelou que o
tubo estava carregado, encerrando a bem-sucedida carreira de 25 anos no
narcotráfico.
Marco ainda conseguiu
dar um frible nos guardas. Enquanto eles buscavam as ferramentas, ele se
esgueirou para fora do aeroporto, pegou um prosaico táxi e sumiu. Depois de 15
dias pulando de ilha em ilha no arquipélago indonésio passou sua última noite
em liberdade num barraco de pescador, em Lombok, a poucas braçadas de mar da
liberdade.
Acordou cercado por
vários policiais, de armas apontadas. Suplicou em bahasa que tivessem
misericórdia dele.
No sábado, enfrentou
pela última vez a mesma polícia, mas desta vez o pessoal estava cumprindo
ordens de atirar para matar.
Foi o fim do Curumim.
Postado em 17 jan
2015 no Diario do Centro do Mundo – Título: Amorim Sangue Novo
Apesar
de abolida, pena de morte ainda tem aplicação prevista no Brasil >>>
Leia também: