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Maria estava muito
desanimada: passaria a noite de Natal a trabalhar. Lembrava-se com triste
saudade das ceias da infância, em que toda a família se reunia para comer,
rezar, conversar, cantar e trocar presentes. Alegria, beleza, sabor, amizade,
fé, tudo o que a maravilhava em menina e jovem mulher estava agora muito longe.
Emigrada por
necessidade, vivia em terra estranha, longe da família e amigos. As notícias de
casa só falavam de miséria e destruição. A viagem e a adaptação não tinham sido
fáceis. Fora acolhida na Igreja. Na paróquia, apesar da dificuldade da língua,
já pertencia à comunidade. Mas neste dia tão importante faltaria à Missa do
Galo, para fazer as limpezas na "boutique financeira". O que
acrescentava degradação à circunstância: a instituição onde trabalhava era um
bando de agiotas, pior do que estrebaria.
A comparação
interrompeu-lhe os pensamentos negros. De repente deu-se conta da semelhança da
sua situação com a de Nossa Senhora, com quem partilhava o nome e de quem era
tão devota desde a infância. A Virgem Santíssima também passou a noite de Natal
numa estrebaria. A Imaculada ocupara aquelas horas a fazer limpezas e
arrumações no curral da aldeia, o mais degradante local da região. Foi assim
que a Rainha do Céu passou a sua noite de Natal: sem ceia, presentes,
decorações, festa.
Apesar disso, a
Divina Pastora estava plenamente feliz. Porque a única condição para a
felicidade é a presença de Jesus. E Ela, que O tinha consigo há nove meses,
agora via-O. Por isso, aquelas limpezas no estábulo de Belém eram mais doces do
que todas as ceias do mundo. Também ela, Maria, podia levar Jesus para as
limpezas da boutique financeira. Assim, mais unida à sua Mãe do Céu do que
alguma vez estivera nas antigas festas de Natal, podia celebrar a solenidade de
uma forma plena.
Seguindo esta
linha, começou a perceber que a sua condição, que tantas vezes considerara
miserável, era muito melhor do que a de Nossa Senhora, precisamente no Natal. A
Sagrada Família, na noite mais decisiva da humanidade, estava reduzida à
condição de sem-abrigo. Em comparação, e apesar de tudo, a sua vida era quase
luxo. A casa simples, a mobília barata, as refeições, tudo era muito melhor do
que Maria, José e o Menino tinham tido na sua viagem a Belém. De que se queixava?
De repente, as suas privações e sacrifícios, isolamento e saudades pareciam
meios excelentes para se unir ao Jesus que nascia; também Ele em terra
longínqua, afastado da família e amigos, em condições de declarada miséria,
junto dos animais.
Pensando no burro e
na vaca, que contemplavam sem entender o mistério central da história, Maria
reflectiu sobre os financeiros e contabilistas cujos gabinetes ia limpar nessa
noite. Ao contrário dos animais do Presépio, eles não eram bestas, mas pessoas,
para quem Jesus nascia no Presépio. Muitos, provavelmente, olhariam para o
Natal como vaca para manjedoura, simples oportunidade de lucro. Mas, ao
contrário da vaca do Presépio, eles podiam ser salvos. Desde que alguém lhes
falasse do verdadeiro sentido do Natal.
Mas quem podia
falar? Maria pensou que ela era quem passaria a noite de Natal no escritório
deles. Enquanto Jesus nascia, era ela que estava ali, naquela estrebaria
monetária, e era a única que lhes podia levar o Natal. Mas como? Não sabia
escrever a língua nem tinha dinheiro para presentes. Lembrou-se então de fazer
pombinhas de papel, a única dobragem que sabia. Seria uma oferta singela, mas
talvez tocasse a alma de alguém.
Passou o resto da
tarde a dobrar pombinhas. Fez mais de 20, porque não se lembrava de quantas
secretárias havia no escritório, e queria ter a certeza de deixar uma em todas
elas. Ao dobrar o papel ia rezando pela pessoa que a receberia. Ela nunca os
vira, a não ser alguns que por vezes faziam serão quando ela ia limpar. Mas
Nossa Senhora conhecia-os bem e por isso a oração chegaria ao destino.
Lembrou-se depois de desenhar um Menino Jesus no lado de cada pombinha. Assim,
mesmo sem palavras, percebia-se o que significavam.
Nessa noite as
limpezas na boutique foram um momento de grande alegria e consolação para
Maria. Sentiu-se no Presépio, acompanhando Nossa Senhora, que dava um ar
acolhedor ao redil para receber o Menino. Limpar o pó, despejar os caixotes,
lavar os vidros, com Ela e como Ela, constituíam verdadeiros mistérios de amor,
na expectativa de Jesus que nascia. Até fez uma comunhão espiritual, em união
com os amigos da paróquia na Missa do Galo. A parte mais importante da noite
era deixar em cada secretária a sua pombinha, rezando pelo ocupante.
Na noite a seguir
ao dia de Natal, Maria voltou à boutique financeira. Não deixou de sentir uma
dor cada vez que encontrava uma das suas pombinhas no caixote que despejava.
Isso apenas gerava uma oração adicional por quem a tinha deitado fora. Mas
rejubilava nos gabinetes onde via a sua pombinha instalada no alto da estante,
junto às outras decorações de Natal.
Postado por João César das Neves no DN/Portugal
Postado por João César das Neves no DN/Portugal
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