27 janeiro 2018

A abordagem constitucional da liberdade de expressão

O direito de liberdade de expressão é um direito fundamental, que se mostra como corolário da dignidade da pessoa humana, representando, de outra parte, fundamento necessário à sobrevivência do Estado

A LIBERDADE DE EXPRESSÃO COMO ELEMENTO INTEGRATIVO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E FUNDAMENTO PARA O DESENVOLVIMENTO DO ESTADO
O direito de falar e de calar, quando se pensa em liberdade de expressão (art. 5º, IV da Constituição Federal) não deve ser dado a ninguém, muito menos ao Estado.
A par disso tudo, a restrição ao direito de se expressar livremente representa um exercício de violência, por parte de quem promove a censura, seja o Estado ou o próximo, na medida em que viola a abrangência totalizante da dignidade da pessoa humana, visto que a liberdade propugna pela auto-realização da pessoa humana (MENDES; COELHO; BRANCO, 2008, p. 359).
Se de um lado existe o Poder Público, com todos os instrumentos institucionais aptos a conter a expressão do livre pensamento; e de outra ponta, a abstração constitucionalmente consagrada no texto constitucional, é necessário a prática democrática constante e efetiva, por todos os canais historicamente e tecnologicamente construídos, de modo a concretizar essa abstração praticamente inacessível a uma definição instantânea em um momento de necessidade inusitado.
O projeto democrático inacabado, fundado em um liberalismo de superfície, que resultou no lamentável mal entendido de nossa democracia, que nos fala Sérgio Buarque de Holanda (1995, passim), é o cerne em que se insere tal discussão, apesar de desbordar, e muito, dos limites desse artigo.
Assim, a Constituição Federal é, em última análise, uma lei. A mais importante delas. Ao menos é possível tê-la em mente como tal. A par dessas considerações, quer se apontar que com a implantação do Estado Constitucional Democrático de Direito, todas as normas constitucionais passaram a ser dotadas de supremacia jurídica, providas, que são, de eficácia jurídica; notadamente, as normas definidoras de direito, dotadas de aplicação imediata, como se pode depreender do artigo 5º, § 1º da Constituição Federal[1].
Dessa forma, a Constituição Federal, ao dedilhar-se suas páginas ou examinar-lhe os artigos[2], vê-se um conjunto de temas que foram lá inseridos de modo a se poder concluir, sem sombra de dúvida tratar-se, a liberdade de expressão, de um direito fundamental.
Portanto, ao se considerar a Constituição Federal como lei, a mesma como espécie do gênero norma jurídica é dotada de imperatividade. E, tal constatação faz concluir que o comando que emana da Constituição Federal corresponde a uma prescrição e que o seu descumprimento, por consequência, implica no acionamento de um mecanismo de coação.
Tal acepção é apresentada por Luís Roberto Barroso (p. 76, 2006) nos seguintes termos:
As normas constitucionais, como espécies do gênero normas jurídicas, conservam os atributos essenciais destas, dentre os quais a imperatividade. De regra, como qualquer outra norma, elas contêm um mandamento, uma prescrição, uma ordem, com força jurídica e não apenas moral. Logo, a sua inobservância há de deflagrar um mecanismo próprio de coação, de cumprimento forçado, apto a garantir-lhe a imperatividade, inclusive pelo estabelecimento das conseqüências de insubmissão ao seu comando.
 De outra parte, o Estado representa, na acepção de mundo contemporâneo vivenciada pela humanidade, a organização fundamental em que o homem se situa, possibilitando sua inserção social.
A origem do Estado está adstrita à natureza social do homem. Desse modo, a partir do elemento associativo do gênero humano, o mesmo se agrupa em várias organizações sociais. Por sua vez, essas organizações sociais se originam a partir das afinidades entre os vários grupos humanos, exemplificativamente, nas áreas cultural, econômica, religiosa, esportiva e política.
E, justamente, a partir desses núcleos populacionais, tem-se o surgimento da figura do Estado, representando como a mais importante organização social.
Tal importância é evidenciada por Darcy Azambuja (AZAMBUJA, 2011, p. 20), o qual pondera que:
Com exceção da família, a que, pelo nascimento, o homem forçosamente pertence, mas de cuja tutela se liberta com a sua maioridade, em todas as outras sociedades ele ingressa voluntariamente e delas se retira quando quer, sem que ninguém possa obrigá-lo a permanecer. Da tutela do Estado o homem não se emancipa jamais. O Estado o envolve na teia de laços inflexíveis, que começam antes de seu nascimento, com a proteção dos direitos do nascituro, e se prolongam até depois da morte, na execução de suas últimas vontades. No mundo moderno, o Estado é a mais formidável das organizações.
Desse modo, a conformação do Estado que temos vivenciado em nossa era, projeto evolutivo do chamado Estado Moderno; trata-se de um tipo de sociedade política que teve origem nos séculos XVI e XVII. Sua gênese ocorre com a centralização do poder.
Já o Estado liberal está adstrito ao liberalismo político e econômico, a partir dos séculos XVIII e XIX, notadamente no modelo estatal inglês, momento em que a ordem jurídica se volta para a proteção dos referidos direitos naturais do indivíduo.
Assim, o Estado apresenta-se como aparato fundamental que possibilita vida do homem social e mecanismo de justificação e promoção dos direitos humanos. Portanto, impensável o modelo de sociedade atual, sem a presença do Estado.
Dentro desse contexto, a liberdade de expressão é um direitocontemporâneo ao surgimento do referido Estado Liberal, como parte de um projeto político libertário que emerge da Independência Americana e da Revolução Francesa, integrante do plexo dos direitos correspondentes aos direitos civis e políticos, tem como objetivo a inserção do indivíduo perante o Estado, a partir de sua afirmação, por meio de suas ideias.
O Estado deve garantir o exercício desse direito, portanto[3].
O indivíduo, nessa concepção de mundo, da qual pretendemos aderir, como demonstramos em nosso texto constitucional, é um sujeito ativo. Ele participa. Ele delineia os caminhos políticos a serem seguidos pelo Estado. O indivíduo apresenta, nessa perspectiva um status de participação.
A sujeição do indivíduo ao Estado ocorre, excepcionalmente, em um outro contexto e momento. Talvez, por exemplo, a sujeição do indivíduo às forças de segurança pública quando há crime de dano ao patrimônio público e particular, porque há a delimitação constitucional (legal) para tanto[4].
O compromisso com tal estado de coisas está lastreado na busca de uma nação com mentalidade de vanguarda, em que há espaço para todo o tipo de ideias. As ideias ruins e boas são criteriosamente selecionadas a partir do debate público[5]. Somente as melhores ideias sobrevivem, após serem seguidamente testadas, por meio de múltiplas visões de mundo, a partir de argumentações cada vez mais refinadas.
Tal ambiente de discussão somente é possível na ausência total de censura, sob a vigilância do Estado quanto à mínima violação de tal direito; e se dá por meio de opiniões que possam soar rudes, de mau gosto, idiotas ou ofender o senso comum[6].
Não há outra via possível, que não o debate livre de ideias, e daí, também a salvaguarda ao acesso à ampla informação de qualidade[7].
Portanto, da importância da liberdade de expressão depende a sobrevivência do Estado, porque gabarita o seu povo ao debate mundial, a partir da excelência de sua argumentação, o que somente pode ocorrer no livre câmbio de ideias.
CONCLUSÃO
Tem-se, desse modo, que a liberdade de expressão constitui-se em um direito fundamental.
É necessária ao desenvolvimento da autonomia de cada pessoa, razão pela qual expressa o etos da dignidade da pessoa humana.
A salvaguarda e a promoção da liberdade de expressão, portanto, é uma das razões pelas quais deverá se fundamentar o Estado em sua acepção ontológica, sob pena de se desvirtuar em sua finalidade última e principal, na salvaguarda da pessoa humana em sua totalidade.
 De outra parte, a sobrevivência do Estado está adstrita ao desenvolvimento intelectual de seu povo, que depende diretamente do livre câmbio de ideias.
E mais, a qualidade dessas ideias é diretamente proporcional à maior liberdade de expressão possível, de modo a que o arejamento das várias visões de mundo possa redundar em padrões de comportamento mais sofisticados, na medida em que as coerência do colorido dos argumentos são testados na contra-argumentação da livre arena das ideias.
NOTAS
[1]  Art. 5º. [...] § 1º - As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata
[2] Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] IV – é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato; [...] V - é livre a expressão da atividade intelectual, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença; X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação; [...] XLI – a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdade fundamentais;
Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.
§ 1º - Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV.
§ 2º - É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística.
§ 3º - Compete à lei federal:
I - regular as diversões e espetáculos públicos, cabendo ao Poder Público informar sobre a natureza deles, as faixas etárias a que não se recomendem, locais e horários em que sua apresentação se mostre inadequada;
II - estabelecer os meios legais que garantam à pessoa e à família a possibilidade de se defenderem de programas ou programações de rádio e televisão que contrariem o disposto no art. 221, bem como da propaganda de produtos, práticas e serviços que possam ser nocivos à saúde e ao meio ambiente.
§ 4º - A propaganda comercial de tabaco, bebidas alcoólicas, agrotóxicos, medicamentos e terapias estará sujeita a restrições legais, nos termos do inciso II do parágrafo anterior, e conterá, sempre que necessário, advertência sobre os malefícios decorrentes de seu uso.
§ 5º - Os meios de comunicação social não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio.
§ 6º - A publicação de veículo impresso de comunicação independe de licença de autoridade
[3]ADPF 130, Relator(a): Min. CARLOS BRITTO, Tribunal Pleno, julgado em 30/04/2009, DJe-208 DIVULG 05-11-2009 PUBLIC 06-11-2009 EMENT VOL-02381-01 PP-00001 RTJ VOL-00213- PP-00020.
[4] Assim, tais direitos visam à garantia de um espaço de liberdade por parte dos cidadãos a partir de uma limitação do poder estatal. Tais direitos são, portanto, direitos subjetivos tanto para se evitar a interferência indevida (função preventiva), quanto para eliminar agressões que esteja sofrendo no plano da autonomia priva ( função corretiva). FERNANDES. Bernardo Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 4ª ed. Salvador: Juspodivm, 2012, p. 322.
[5] As condições como esse debate irá ocorrer e a temática do auditório universal e da razão comunicativa não é esquecida, mas pertence a outro contexto, onde nos preocupamos com a igualdade de condições. Aliás essa discussão também é apresentada por Ronald Dworkin de forma enfática, ao propugnar que: “Podemos dar as costas à igualdade? Nenhum governo é legítimo a menos que demonstre igual consideração pelo destino de todos os cidadãos sobre os quais afirme seu domínio e aos quais reivindique fidelidade. A consideração igualitária é a virtude soberana da comunidade política – sem ela o governo não passa de tirania – e, quanto as riquezas de nações muito prósperas, então sua igual consideração é suspeita, pois a distribuição das riquezas é produto de uma ordem jurídica: a riqueza do cidadão depende muito das leis promulgadas em sua comunidade – não só as leis que governam a propriedade, o roubo, os contratos e os delitos, mas suas leis de previdência social, fiscais, de direitos políticos, de regulamentação ambiental e de praticamente tudo o mais”. (DWORKIN, 2005, p. IX.).
[6]Liberdades fundamentais e “Marcha da Maconha” - 1
Por entender que o exercício dos direitos fundamentais de reunião e de livre manifestação do pensamento devem ser garantidos a todas as pessoas, o Plenário julgou procedente pedido formulado em ação de descumprimento de preceito fundamental para dar, ao art. 287 do CP, com efeito vinculante, interpretação conforme a Constituição, de forma a excluir qualquer exegese que possa ensejar a criminalização da defesa da legalização das drogas, ou de qualquer substância entorpecente específica, inclusive através de manifestações e eventos públicos. Preliminarmente, rejeitou-se pleito suscitado pela Presidência da República e pela Advocacia-Geral da União no sentido do não-conhecimento da ação, visto que, conforme sustentado, a via eleita não seria adequada para se deliberar sobre a interpretação conforme. Alegava-se, no ponto, que a linha tênue entre o tipo penal e a liberdade de expressão só seria verificável no caso concreto. Aduziu-se que se trataria de argüição autônoma, cujos pressupostos de admissibilidade estariam presentes. Salientou-se a observância, na espécie, do princípio da subsidiariedade. Ocorre que a regra penal em comento teria caráter pré-constitucional e, portanto, não poderia constituir objeto de controle abstrato mediante ações diretas, de acordo com a jurisprudência da Corte. Assim, não haveria outro modo eficaz de se sanar a lesividade argüida, senão pelo meio adotado. Enfatizou-se a multiplicidade de interpretações às quais a norma penal em questão estaria submetida, consubstanciadas em decisões a permitir e a não pemitir a denominada “Marcha da Maconha” por todo o país. Ressaltou-se existirem graves conseqüências resultantes da censura à liberdade de expressão e de reunião, realizada por agentes estatais em cumprimento de ordens emanadas do Judiciário. Frisou-se que, diante do quadro de incertezas hermenêuticas em torno da aludida norma, a revelar efetiva e relevante controvérsia constitucional, os cidadãos estariam preocupados em externar, de modo livre e responsável, as convicções que desejariam transmitir à coletividade por meio da pacífica utilização dos espaços públicos.
ADPF 187/DF, rel. Min. Celso de Mello, 15.6.2011. (ADPF-187)
[7] A plenitude de formação da personalidade depende de que se disponha de meios para conhecer a realidade e as suas interpretações, e isso como pressuposto mesmo para que se possa participar de debates e para que se tomem decisões relevantes. O argumento humanista, assim, acentua a liberdade de expressão como corolário da dignidade da pessoa humana. (MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 360.



Imagem ilustrativa do Tomando Partido (editada emnossa redação)

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