Semana passada, a mídia noticiou a morte súbita de um jornalista de 76 anos, Paulo Henrique Amorim. Foi vítima de um enfarte, segundo o jornal O Globo, mencionando que PHA, como era conhecido, depois de passar por diversas redações, apresentava o programa Domingo Espetacular, na TV Record. Em uma frase, explicou, “ele estava afastado desde o mês passado”.
(Foto: Reprodução do filme The Sound Of Music, 1965) |
A Folha de S.Paulo deu chamada de capa, logo abaixo da nota sobre a morte de Chico de Oliveira, aos 85 anos. O sociólogo ganhou meia página e Paulo Henrique Amorim, duas colunas abaixo dele. A Folha conta que PHA passou mal em casa e que a suspeita recai sobre o infarto. Explica que PHA estava na Record desde 2003, que há treze anos apresentava o programa Domingo Espetacular, mas que havia sido afastado, embora continuasse contratado – o que, para o leitor, soou um contrassenso.
O Valor não noticiou a morte de PHA, só a de Chico de Oliveira. Veja deu uma nota com foto sem registrar o afastamento do programa Domingo Espetacular, da Record.
O Estadão, embora explique melhor a trajetória de Paulo Henrique Amorim – trabalhou na TV Globo, Bandeirantes, TV Cultura, TV Manchete, Realidade, Veja – declara que ele havia sido afastado da Record no mês passado. Aqui, uma pista: “Ele também editava o site Conversa Afiada, em que fazia comentários sobre política e economia, sempre com forte teor crítico ao governo Bolsonaro”.
Se ainda não sabe, basta ao interessado dar um Google na TV Record para ler que a emissora pertence, desde o início da década de 1990, a Edir Macedo, fundador e líder da Igreja Universal do Reino de Deus.
É só somar dois com dois para descobrir o que a imprensa não noticiou: PHA foi afastado por pressões superiores pelas críticas que fazia em seu site a Jair Bolsonaro. O presidente declarou semana passada que um dos dois ministros que indicará para o STF não será nem o que terá notório saber jurídico, nem uma reputação ilibada, mas aquele “terrivelmente evangélico”. O que nos faz duvidar se este permanece um país laico. Ou se vivemos um choque entre a barbárie e a civilização.
O corpo de PHA foi velado no melhor lugar que poderia ter sido: a Associação Brasileira de Imprensa do Rio. Como disse o atual presidente, Paulo Jerônimo de Souza, o Pajê, “esta é a casa onde o Paulo Henrique deveria ser velado, na casa do jornalista”.
As rádios, sites e TVs noticiaram a morte, mas a Record repetiu em tempo integral passagens do “grande jornalista e escritor”, reprisando episódios do Domingo Espetacular sem mencionar que PHA estava afastado, nem explicando o por quê. Quem leu Mino Carta na Carta Capital, no dia 1º de julho, já estaria comichando, “não é preciso espremer as meninges para entender o motivo do afastamento”.
E, na Carta Capital desta semana, Mino Carta detalha com todas as letras: PHA “ tinha sido posto na geladeira pela emissora, parte do pool de assessorias de imprensa do governo Bolsonaro, de resto composto pelo ‘jornalismo’ de SBT e Rádio Jovem Pan. Era um veterano da perseguição”.
Num box, “Meu amigo fraterno”, da edição desta semana, Mino Carta põe os pingos nos is. “Faz menos de um mês, Paulo Henrique coroou a sua carreira de perseguido ao ser forçado a abandonar a direção do programa Domingo Espetacular, que ancorava na TV Record. Deu-se que o bispo Macedo cedesse às pressões do governo Bolsonaro. Creio que este episódio tenha magoado o meu amigo caríssimo, veterano da mudança obrigada de empregadores. Jornalistas autênticos incomodam além da conta”.
O amigo Renato Rovai, editor da revista Forum, escreveu “eu, aqui do meu canto, acho que Paulo foi ‘morrido’ por essa gente [uma suposta pressão do presidente e da patrocinadora Havan, do empresário Luciano Hang], porque estava sendo perseguido de maneira violenta”. Num vídeo de 2017, PHA diz que é jornalista profissional desde 1961 e que podia explicar cada centavo de sua renda. Revela ser vítima de dezenas de processos que aumentavam mês a mês e lastimava estar à deriva, pois a Constituição brasileira não protege jornalistas independentes como ele. “Na teoria, protege a liberdade de expressão, mas na prática há uma falha sistêmica e os poderosos supostamente ofendidos acabam por prevalecer na Justiça brasileira”.
De fato, há uma censura à liberdade de expressão, à palavra e ao pensamento, ele diz. E, indefeso, resolveu recorrer à Corte Interamericana de Direitos Humanos, ligada à OEA. Até o momento de sua morte, não se pode afirmar que funcionou.
Seu Conversa Afiada era fonte dos processos que passou a receber. Na Carta Capital, Fred Melo Paiva detalha: “o ministro Gilmar Mendes tomou-lhe 150 mil reais em indenização. O banqueiro Daniel Dantas foi outro a levá-lo aos tribunais”. No Twitter, o repórter Rubens Valente, da Folha de S.Paulo, contou: “Em maio, num encontro de jornalistas no Peru, citei as dezenas de processos movidos contra Paulo Henrique Amorim. Antes, pedi a ele que me mandasse uma frase para eu citar no meu comentário, e foi esta: ‘Diz-me quem te processa e te direi quem és’”.
PHA foi vítima da censura. Sua morte não pode ser considerada natural, é mais um entre os inúmeros jornalistas abatidos a bala, por envenenamento ou censura pelo mundo. Sucumbiu.
Paulo Francis sofreu um infarto que o matou aos 67 anos, em 1997, acuado por uma ação de indenização milionária proposta contra ele pela diretoria da Petrobras, quando o presidente da empresa era Joel Rennó. Na Globo, Francis havia delatado as contas secretas na Suíça dos diretores da estatal, provando seu enriquecimento ilícito.
O jornalista Alberto Dines adoeceu gravemente dois meses depois da recusa da TV Brasil em renovar o contrato do programa Observatório da Imprensa, que faria vinte anos em 2016, a equipe sem saber o que fazer com várias entrevistas. O programa pronto para a comemoração ficou inédito. Essa foi a causa de sua morte, dois anos e meio depois.
Quando um jornalista morre ou adoece de maneira fulminante, é preciso desconfiar se não houve uma bala cravada na sua carreira.
Ps: Não sei por que, quando ouço Bolsonaro alegar que vai implementar 108 escolas militares pelo país, me vem à cabeça a cena do filme A Noviça Rebelde (Robert Wise), de 1965, quando o capitão Von Trapp (Christopher Plummer) apita para comandar a descida pela escadaria dos sete filhos em marcha militar, para se apresentar diante da estupefata nova governanta (Julie Andrews), um a um em passo marcial, mediante um som diferente do seu apito para cada.
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