Por Fernando Henrique Cardoso
Estava na Argentina quando irromperam
as queimadas no Brasil. A diplomacia a que me imponho por haver sido presidente
me obriga a tratar com especial cuidado questões nacionais quando estou no
exterior, ainda que em país irmão.
De volta a casa, não posso deixar de
constatar, com preocupação, os graves danos causados pelo governo atual à
imagem do País no exterior. É difícil contestar a avalanche de críticas e
afirmações, nem sempre corretas, que deságuam nas mídias internacionais mais influentes.
Isso porque o desaguisado presidencial é extenso: ataque a valores universais
de proteção ao meio ambiente e aos direitos humanos, demonstrações de
menosprezo pela ciência e pela cultura, supostas relações com as milícias que
compõem o trágico quadro de violência no Rio de Janeiro, casos de nepotismo, e
por aí vai. Por que e para que tanto desatino?
Aparentemente, o presidente e seu
círculo mais íntimo parecem não haver entendido que não estamos mais na guerra
fria. Não há mais o confronto entre dois blocos ideológicos. Mesmo Donald
Trump, capitaneando uma relação comercial belicosa com a China e pensando em
levantar muros na fronteira mexicana, não se pauta pela lógica bipolar de um
mundo dividido entre esquerda e direita. Nem a China. Muito menos a Europa.
Qual o sentido, pois, de fazer desaforos ao presidente da França e sua esposa e
em ressuscitar um nacionalismo anacrônico? Os mais velhos hão de se lembrar do
ardor nacionalista que aflorou (à época com maior razão) diante do projeto de
um think tank americano, Hudson
Institute, que nos anos 1960 aventou a ideia estapafúrdia de transformar a
Amazônia num grande canal de navegação alternativo ao do Panamá.
A reação dos europeus ao aumento das queimadas na Amazônia
responde a motivos distintos e não se deu de forma uniforme. Há uma preocupação
genuína com questões que têm impactos globais (mudança climática e extinção da
biodiversidade). Existem também razões menos universais, como a defesa de
interesses protecionistas, e motivações circunstanciais, como o receio de
derrotas em eleições locais a se realizarem no próximo ano. Em lugar de reagir
toscamente, negando dados empíricos e insultando cientistas e chefes de Estado
de outros países, deveríamos ter reagido prontamente para combater as queimadas
e mostrar, na prática, o compromisso soberano do Brasil com a proteção do meio
ambiente. Não há meio mais eficaz de desinflar a conjectura inaceitável sobre
conferir um estatuto internacional à Amazônia.
Nessas horas precisamos de bom senso
e racionalidade, virtudes difíceis num país polarizado. Patriotismo não se mede
por bravatas nacionalistas, sobretudo quando insultuosas. A proteção do bioma
amazônico é, acima de tudo, do interesse do Brasil, um interesse coincidente
com o dos demais países que compartilham esse bioma e também com o do planeta.
Dadas as restrições fiscais, recursos do exterior são bem-vindos. Não nos falta
capacidade para bem administrá-los, com transparência e em parceria com a
sociedade civil, que pode e deve ser aliada, e não inimiga na preservação do
meio ambiente e na realização de projetos de desenvolvimento.
Há queimadas que em parte são
cíclicas, em parte são legais, mas em grande parte (é preciso avaliar o
tamanho) são criminosas: derrubada ilegal de mata para queimá-la e transformar
a floresta em pasto ou em áreas para grãos. Se nos faltassem terras, vá lá,
caberia a discussão sobre o que fazer. Mas elas são abundantes e o agronegócio
brasileiro, o que opera dentro da legalidade, não precisa depredar para ser
competitivo. Ao contrário, só continuará a ser competitivo se não depredar,
como prevê a Constituição e está estatuído nas leis.
Enquanto vozes lúcidas do agronegócio
clamam por racionalidade, no governo há quem insista em distorcer os fatos.
Como se fosse pouco negar a validade de dados científicos, busca-se transformar
vítimas em algozes. Nessa linha, aponta-se a demarcação de terras indígenas – e
não a atividade predatória, ilegal e não raro associada ao crime organizado –
como o grande obstáculo ao desenvolvimento da Amazônia.
É essa retórica de desinformação,
insulto e incentivo a práticas ilegais, reiterada ao longo de oito meses, a
principal responsável pela crise atual. De um lado, ela abriu a porteira para
que os interessados no desmatamento ilegal se sentissem autorizados a tocar
fogo no cerrado e na floresta. De outro, deu o pretexto para que a defesa de
interesses protecionistas se revestisse da capa de legitimidade da preocupação
ambiental. A retórica oficial tem sido danosa para os interesses do Brasil. Pode
pôr em risco até mesmo o acordo do Mercosul com a União Europeia.
De positivo, nesse quadro, só há dois
pontos a destacar: primeiro, a reação rápida e vigorosa de vários setores da
sociedade brasileira; segundo, a prontidão das Forças Armadas em responder à
situação de emergência provocada pelo descontrole das queimadas na Região
Amazônica.
Com tanto horror perante os céus,
como disse um poeta, devemos aguentar firmes (imprensa, Congresso, Judiciários,
líderes empresariais e da sociedade civil) para não deixar que arroubos
personalistas e interesses familiares comprometam o futuro do País.
Creio que foi Otávio Mangabeira quem
disse: a democracia é como uma plantinha tenra, precisa ser regada todos os
dias para crescer. Trata-se agora de preservá-la. Como mostram muitos livros
recentes sobre a crise da democracia, a forma moderna de corrompê-la não passa
por golpes militares, mas por atos governamentais que, quando não encontram
reação à altura, pouco a pouco lhe vão arrancando as fibras.
O preço da liberdade é a eterna
vigilância. É preciso nos mantermos atentos e fortes para que as instituições
do Estado continuem a cumprir, com independência, as obrigações impostas pela
Constituição.
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